Se você vir uma casa com venezianas azuis no Sul dos EUA, fique ligado em seu significado

Faça uma viagem pelo Sul dos EUA, e notará uma característica comum entre as casas tradicionais e recuadas da calçada. É interessante que a grande parte dos proprietários pintou o teto das varandas e as venezianas com um tom específico de azul. E se você pesquisar sobre o nome dessa cor, vai saber que se chama “azul haint”. Contudo, a história por trás do uso desse tom particular é provavelmente mais realista – e assustadora – que você possa imaginar.

Naturalmente, muitos nem dariam muita atenção à cor do teto de suas varandas ou janelas. De fato, é possível – e mesmo provável em muitos casos – que as pessoas escolham o azul “haint” para dar continuidade às tradições da família. E esse é um fator que a diretora de inteligência de design estratégico, Ellen O´Neill, da produtora de tintas Benjamin Moore, abordou quando falou em 2017 a Today.

O´Neill disse, “Ninguém titubearia em pintar sua varanda de azul, porque as [varandas] de seus avós e pais eram azuis. Faz parte do design de varandas.” A expert de design de cores Lori Sawaya também confirmou isso para a fabricante de tintas Sherwin-Williams. Ela disse, “O teto das varandas sempre foi azul no Sul.”

Entretanto a tradição da pintura de varandas tinha que ter uma origem. E parece que a origem de se pintar venezianas e varandas de azul pode ter raízes, ou em preocupações mais cotidianas, ou numa história vergonhosa conhecida por todos. Mencionando um caso em relação à primeira hipótese, então, Sherwin-Williams afirma que a prática pode ter começado com os vitorianos.

A teoria diz que os vitorianos – ou aqueles que viveram na segunda metade do século 19 – gostavam de decorar suas propriedades com cores que lembrassem a natureza. Então, por exemplo, os vitorianos típicos poderiam ter aplicado cores terrosas, como ocre ou terracota, a suas casas. Isso aparentemente teria trazido à mente um sentido de se estar em um ambiente aberto.

Então, os vitorianos parecem que escolheram o azul para o teto de suas varandas pela mesma razão exatamente; ele os lembraria do céu claro – mesmo quando o tempo real estava horrível. Essa teoria, portanto, está bem longe da história vergonhosa que muitos acreditam que essa cor envolva. Contudo, apesar de O´Neill não ter mencionado os vitorianos especificamente, a designer parece concordar com o conceito geral de que o azul lembra o céu.

O´Neill disse a Today, “Um céu azul é uma visão que nos traz otimismo. Nos lembra do amanhecer; ele afasta o tempo nublado e nos distancia do anoitecer. Pintar um teto de azul traz a natureza e o céu para dentro de casa.” Então esse argumento – e não qualquer outra razão obscura – por trás desse azul “haint” tão comum no Sul é convincente. E parece que fazer as pessoas lembrarem de um longo dia de verão não é a única razão lógica para alguém desejar um teto azul para a varanda.

De acordo com a Colour Affects – e várias outras fontes – os tons azuis geralmente têm um impacto relaxante nas pessoas. E se isso for verdade, segue daí que seria a cor ideal com a qual se decorar uma varanda. Além disso, não seria bom se sentir estressado ou enfurecido enquanto se estiver sentado na varanda tentando desfrutar de um pouco de silêncio.

A cor também pode funcionar para tornar a varanda uma extensão tranquila do ambiente ao redor. É por isso, como mencionamos, que associamos azul com o céu azul. Lori Sawaya disse à Sherwin-Williams, “O azul claro clareia muito o espaço e propaga qualquer luz que você tenha ali, pela simples natureza da cor”. Então o tom parece promover a sensação de relaxamento de se estar ao ar livre. Para muita gente, isso já seria suficiente. Entretanto para outros o uso de azul “haint” está mais relacionado a uma história vergonhosa.

Era só isso a história, afinal? Até porque deve haver também alguma outra razão prática para que o povo escolha um teto de varanda azul – mesmo que seja apenas um mito. Veja só, essa teoria diz que a tinta azul ajuda a afastar insetos durante os meses quentes. O´Neill disse a Today, “Se um inseto percebe que um teto é realmente o céu, ele instintivamente não vai se abrigar ali.”

O´Neill continua, “Depende quanto você quer influenciar o cérebro de um inseto..., mas lembra o fato de as joaninhas pousarem em casas brancas. É um truque visual.” Outros proprietários parecem crer que haja alguma verdade nessa teoria, também, e é por isso que pintaram os tetos de suas varandas de azul. Mas é possível que não seja 100% verdade – pelo menos, não mais hoje. Também é possível que os moradores estejam fechando os olhos para a história.

Historicamente falando, como se sabe, as tintas azuis usadas no teto eram geralmente “tintas de leite” (tintas com base em leite, não tóxicas), e frequentemente incluíam soda cáustica na mistura para uma medida correta. Então, a soda cáustica é que afastava os insetos na realidade. E como a tinta de leite frequentemente se deteriorava com o tempo, a adição de camadas extras de tinta de vez em quando aumentava a quantidade de soda cáustica nos tetos e venezianas.

Claro que a tinta raramente é feita de soda cáustica hoje. As tintas da Sherwin-Williams, por exemplo são geralmente misturadas com água ou óleo. Na realidade, a soda agora é mais presente em removedores de tintas químicas do que em tintas que já vêm prontas. Então, parece que a capacidade de tintas azuis químicas afastarem insetos das varandas seria só lenda. No entanto as pessoas começaram a pintar suas varandas e venezianas de azul por uma razão.

Mas seria por uma das razões que apresentamos acima – ou por uma explicação mais séria? Ora, mitos e lendas podem ter alguma parte no uso de cores, também. Certamente o Sul dos EUA tem uma história rica – e muitas de suas tradições nasceram anos e anos atrás. Ou talvez é simplesmente porque a cor é assim tão adaptável? A cor azul cai bem em qualquer casa, reconheçamos.

Na realidade, O´Neill disse a Today que azul funciona “independente do resto das outras cores” numa casa. A designer explicou, “É mais ou menos assim, ‘Ah, claro, é o céu.’”. Todavia, embora a designer de interiores Zoe Kyriacos tenha concordado a princípio, ela argumentou para a Sherwin-Williams que há algo além disso.

Kyriacos disse, “Você não quer que [um teto azul] se pareça com algo postiço ou que tenha vindo sei lá de onde. Você quer que se pareça como uma parte natural do conjunto.” E – deixando de lado todas as repercussões históricas possíveis do azul “haint” – a expert em cores deu um conselho a mais para escolher a cor certa para sua casa.

Então, se você quer deixar de lado qualquer receio quanto à história horrível do azul “haint” e está apenas querendo decorar uma casa ao estilo antigo, Kyriacos recomenda que se pense num azul pálido. Mas se sua casa é mais moderna, seria melhor você selecionar um azul com mais personalidade. E para misturar um pouco as coisas, a designer considera que os azuis com sugestões de tons diferentes poderiam ficar muito bons.

O tom que estamos mais interessados, entretanto, é o azul “haint”. Esse é o azul mais sutil, quase turquesa, que é aparentemente o favorito dos sulistas – particularmente na Carolina do Sul. E o nome desse tom específico poderia dar uma pista de sua suposta origem mítica. Isso, por sua vez, também realçaria os aspectos mais vergonhosos da história dessa cor.

Então, a palavra “haint” na verdade se refere a espírito ou fantasma no folclore sulista. Mas – como você provavelmente já adivinhou – não são espíritos do bem. De acordo com a lenda, “haints” ou “boo hags” eram seres repulsivos que de alguma forma se desprendiam de seus hospedeiros humanos.

Esses fantasmas então sairiam vagando pela terra depois do pôr do sol procurando mutilar ou possivelmente assassinar qualquer um que cruzasse seu caminho. Então, se você acredita nessas histórias – como o povo Gullah do Sul parecer que acreditava – é compreensível que você pudesse desejar algum tipo de proteção contra os malévolos “haints”.

Assim, o azul “haint” foi escolhido para confundir os espíritos e, portanto, manter as pessoas a salvo de seu mal. Mas como isso aconteceu? Bem, tem ligação com alguns dos fatores que discutimos anteriormente – a saber, que o azul pode lembrar a cor do céu ou da água.

Esse tom específico de azul era significativo porque acreditava-se que as “boo hags” não conseguiam atravessar a água. Também se pensava que os espíritos não se aproximassem do céu porque as vítimas que procuravam estavam no chão. Então, ao pintar os tetos, venezianas e até garrafas de vidro com esse matiz do azul, as pessoas acreditavam que estavam sendo protegidas.

Mas, apesar de as histórias de “boo hags” talvez não serem necessariamente verdadeiras, a da pintura com azul “haint” ainda choca – e é muito real. Também tem pouco a ver com os espíritos sobrenaturais e tudo a ver com um sofrimento insuspeitável. Na realidade, tudo começou com as plantas índigo e uma garota de 16 anos chamada Eliza Lucas.

O tingimento com índigo – componente essencial da tinta azul – no passado era predominantemente obtido de plantas índigo. Isso foi há muito tempo antes que o índigo sintético pudesse ser produzido em larga escala, claro. E no século 18 a tintura difícil de ser obtida a partir dessas ervas, árvores e arbustos era sinal de riqueza.

Assim, foi um divisor de águas na história da agricultura da Carolina do Sul quando a jovem Lucas começou a extrair índigo em 1742. Foi o momento em que a tintura foi cultivada pela primeira vez nos Estados Unidos, e cinco anos depois, uma carga do material precioso já foi embarcada e cruzou o Atlântico.

Lembre-se: a Revolução Americana só ocorreria depois de 20 anos – então na época os Estados Unidos eram ainda colônia Britânica. E como o índigo tinha muita demanda na Europa, a exportação da tintura virou um negócio de sucesso. Realmente, em seu auge, mais de 540 toneladas de índigo partiram dos EUA em um único ano, de acordo com a South Carolina Encyclopedia.

É incrível, como o Ancestry.com revela, que o comércio de índigo se tornou o segundo maior negócio de exportação nos Estados Unidos. Aqueles que cuidavam do cultivo da tintura portanto estavam ganhando rios de dinheiro. E o índigo estava sendo usado para criar roupas de luxo para as classes mais altas da Europa. Contudo havia uma “pegadinha” na produção em larga escala da rara tintura.

Não havia uma forma fácil de cultivar a planta, e o processo de transformá-la em tintura poderia levar até 20 horas. Isso envolvia métodos trabalhosos e demorados como imersão, batimento, drenagem, secagem e transporte da mercadoria. Também dependia de trabalhadores com conhecimento especializado.

Onde a produção de índigo era assim complicada, ter lucros com o comércio do produto era praticamente impossível. Mas em meados do século 18, ricos proprietários rurais aproveitaram o trabalho escravo para fornecer trabalho gratuito. Mais especificamente, os donos de terras aproveitaram o conhecimento e a expertise dos escravos africanos.

Havia um outro problema, também. Como a demanda por índigo aumentava, aumentava também a aparente necessidade de trabalho escravo. Isso levou a um estímulo a imigração de escravos para a Carolina do Sul. E de acordo com o Ancestry.com, mais da metade dos escravos que aportaram nos EUA foram para esse estado.

No entanto não foram só os escravos africanos que enfrentaram tempos difíceis. A demanda por índigo aumentou tanto que, veja só, as plantações acabaram esgotando as terras. E isso resultou no fato de os donos de terras tomarem mais terras das tribos indígenas vizinhas. 

Sendo assim, agora o número crescente de escravos estava trabalhando em terras que se expandiam sem parar. E, como você pode imaginar, os escravos já tinham suportado condições abomináveis. Os navios usados para transportá-los para o país eram repletos de abusos e doenças, para completar. Além disso, um quinto dos escravos africanos na metade do século 18 nem chegava a sair dos barcos, de acordo com o website Black History Month.

A vida nas plantações provavelmente não era muito melhor. Louise Miller Cohen, que criou o Museu Hilton Head Island Gullah, contou ao Atlas Obscura em janeiro de 2020, “Se [melhorias] fossem acrescentadas ao índigo, eles fariam de tudo para que a palavra nem fosse mencionada.” O boom do índigo, entretanto, logo acabaria.

A Guerra de Independência dos EUA aconteceu entre 1775 e 1783. E depois que o conflito terminou, as Treze Colônias alcançaram a independência e fundaram oficialmente os Estados Unidos da América. Mas o comércio de índigo definitivamente acabou anos depois da assinatura da Declaração de Independência.

Os Estados Unidos não estavam mais em dívida com os britânicos, afinal, e a Grã-Bretanha começou a olhar para a Índia para suprir necessidades de índigo. Então, já em 1802 – só 20 anos depois da guerra – a tintura não era um produto no comércio de exportação da Carolina do Sul. Mas se passariam mais 63 anos antes que a escravidão fosse abolida – e os donos de terras simplesmente encontraram um outro comércio para explorar a força de trabalho deles.

Aqueles escravos africanos que primeiro cultivaram o índigo eram os ancestrais do povo Gullah. E foi sua suposta crença em “boo rags” e em “haints” que, tudo indica, deu destaque à cor azul no Sul. Dessa forma, é esse grupo que também passou a dar mais e mais importância à cor azul “haint”.

Heather L. Hodges, a diretora executiva da Gullah Geechee Cultural Heritage Corridor National Heritage Area, disse ao Atlas Obscura, “A tintura índigo está profundamente arraigada na cultura africana.” Ela também explicou que o azul “haint” “é largamente usado pelos artistas visuais e produtores de filmes da Gullah Geechee como uma forma de expressão de sua... herança e sua história compartilhadas com o cultivo do índigo.”

Por exemplo, o aclamado filme Filhas do Pó, de Julie Dash, apresenta o tema do índigo do início ao fim. Até se questionou se o uso que o filme faz do índigo representa as formas nas quais os personagens precisam interagir com seus próprios passados dolorosos. O filme também foi o primeiro de uma mulher afro-americana a ser distribuído por todo o país.

Tanto Cohen quanto Hodges também revelaram que trabalharam intencionalmente com a tintura para ajudar os nativos a se reconectarem com o passado. As duas até organizaram workshops e eventos sobre o uso do índigo. Cohen disse ao Atlas Obscura, “Estou interessada em aprender tudo o que puder sobre o cultivo que levou meu povo à perda de sua liberdade”.

Portanto, o uso de azul “haint” em venezianas e tetos de varandas por toda a Carolina do Sul e em outras partes parece ser comum. Contudo, parece também que a história desse tom de azul está longe de ser conhecida. Para o povo Gullah e seus ancestrais africanos, no entanto, sua importância nunca será esquecida.