Um olhar atento à Última Ceia de Leonardo revela muitos segredos

A Última Ceia: é uma pintura muito especial – uma obra prima, de fato – e seu criador é um dos mais celebrados e enigmáticos artistas da História. A cena que a pintura mostra está entre as mais fortes já feitas, também – inclusive importante porque é central à história do cristianismo. Mas haveria algo mais na Última Ceia de Leonardo da Vinci além disso? Bem, de acordo com alguns, o clássico mural pode estar ocultando algumas mensagens secretas.

Como um dos trabalhos mais frequentemente discutidos na arte ocidental, A Última Ceia realmente deve conter segredos. Afinal, incontáveis experts se debruçaram sobre a pintura por todos os séculos desde sua criação. Contudo, embora A Última Ceia tenha ganhado seu lugar na História, muitos mitos e lendas surgiram em seu rastro.

Então, o que a pintura em si revela? Central no trabalho, é claro, está Jesus Cristo – o filho de Deus, de acordo com a religião cristã. E Cristo está rodeado n´A Última Ceia por seus 12 apóstolos. Como conta a Bíblia, eles eram os 12 homens que seguiram mais de perto os ensinamentos de Jesus e que levaram adiante sua mensagem depois da crucificação.

E para os cristãos e amantes da arte no mundo todo, a cena retratada na pintura é poderosa. O pensamento mais comum diz que o trabalho mostra a última ceia de Jesus e seus apóstolos antes da traição derradeira de Judas e a subsequente crucificação de Cristo. Esse evento, como definido nos quatro evangelhos canônicos, forma um dos fundamentos mais poderosos da tradição e do rito cristão: a Eucaristia, ou Sagrada Comunhão.

Mas parece que essa não é a cena em que Leonardo – o celebrado pintor da obra – deseja que nos concentremos, apesar de que seu simbolismo certamente existe dentro da pintura. Em lugar disso, A Última Ceia parece capturar o momento em que Jesus informa seus seguidores mais próximos de que um deles o trairá em breve.

E a emoção que talvez melhor resulta da expressão dos retratados na pintura – além do próprio Jesus, naturalmente – é a consternação. Na verdade, a linguagem corporal dos apóstolos conforme se conscientizam da revelação de Cristo sugere que essa possa ser a mais evidente retratada n´A Última Ceia.

Mas a pintura cativou de forma discutível algumas pessoas pelo que ela não revela, mais do que pelo que revela. Há aqueles que creem que a mensagem contida na obra vá além de interpretações convencionais, de fato, e que esses segredos, por sua vez, criam afirmações profundas sobre a história relatada na Bíblia. Talvez, não sem surpresa, entretanto, algumas dessas teorias são mais controversas por natureza.

Vamos começar com o que sabemos sobre A Última Ceia, no entanto. Para os iniciantes, os trabalhos para a futura obra prima começaram por volta de 1495, quando a reputação de Leonardo já estava estabelecida. Leonardo nasceu na Toscana, Itália, em abril de 1452 e mais tarde foi educado em Florença, por um artista de nome Andrea del Verrocchio. E como nos conta a História, seguiu à caminho de se tornar talvez o maior exemplo de um polímata – o homem renascentista – que o mundo jamais viu.

Sim, Leonardo não é só confirmado como tendo sido um dos maiores pintores da História, mas também como um inventor, matemático, escultor e astrônomo – para citar só algumas de suas muitas realizações. Entre as invenções atribuídas a Leonardo estão os mais antigos projetos de uma máquina voadora.

Quando se trata das pinturas de Leonardo, no entanto, muitas tinham uma tendência religiosa. Talvez o primeiro de seus trabalhos que ganhou aclamação generalizada foi o Batismo de Cristo – em colaboração com Verrocchio. Outros trabalhos de temática cristã se seguiram antes que Leonardo recebesse a incumbência de criar um mural para o convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão. Esse, por sua vez, se tornou A Última Ceia, e até hoje ela pode ser vista no refeitório do local.

E certamente não era incomum pintar-se a última ceia de Cristo e seus discípulos em obras de arte na época. A interpretação de Pietro Perugino – que foi feita só alguns anos antes, em 1490 – até tem alguma semelhança com a obra de Leonardo, embora Perugino tenha colocado o traidor, Judas, sentado do lado oposto da mesa em relação ao restante dos apóstolos. Outras obras do período compartilhavam com Leonardo a colocação dos participantes da ceia, no entanto.

Além disso, a pintura de Leonardo se baseou em eventos relatados no Evangelho bíblico de João. De acordo com o evangelista, em questão de dias depois de Jesus e seus discípulos terem entrado em Jerusalém, as 13 figuras centrais da História fizeram uma importante refeição juntas. E, durante o curso dessa “última ceia”, é dito que vários eventos importantes ocorreram.

Antes de tudo, Jesus aparentemente profetizou que um de seus apóstolos o trairia e o entregaria às pessoas que depois o prenderiam. Essa é a cena que Leonardo pinta n´A Última Ceia, com os apóstolos sendo vistos reagindo com desalento à notícia de que alguém na mesa seria desleal ao Senhor.

O segundo evento importante que se diz ter acontecido durante a refeição é o estabelecimento da Eucaristia. Esse é o rito cristão de tomar o pão e o vinho como representação do corpo e do sangue de Cristo. É um ritual que forma a base da Santa Comunhão, ou da Ceia de Cristo, que é um sacramento ainda realizado por muitas denominações cristãs.

Em terceiro lugar, o Evangelho de João afirma que Jesus ainda teve outra revelação a ser feita: que o discípulo Pedro negaria por três vezes que conhecia o Senhor, antes do sol se levantar na manhã seguinte. E, é compreensível, que essa notícia cause novamente consternação entre os apóstolos reunidos, entretanto, é a profecia de traição que interessa a Leonardo em sua interpretação da cena como realizada n´A Última Ceia.

Como essa reunião derradeira tem uma posição importante na religião cristã, então, não é surpresa que a pintura de Leonardo estivesse longe da primeira imagem feita do evento. Mas, ao contrário de outras representações da última ceia, a obra de Leonardo se tornou o foco de um debate amplo, de teorias da conspiração, mitos, lendas e enigmas. Então, será que a obra prima realmente contém mensagens secretas?

Bem, muitos creem que sim, e há uma teoria em particular que cresceu em importância nos últimos tempos. Como se sabe, Leonardo era conhecido por pintar figuras masculinas que poderiam ser consideradas andróginas por natureza – mais notavelmente em seu trabalho Baco e São João Batista. E de acordo com alguns, também é o caso d´A Última Ceia.

De forma mais óbvia, há um personagem relativamente andrógino colocado à esquerda de Jesus, para quem olha à pintura. E enquanto a maioria dos historiadores e acadêmicos de arte dizem que essa figura é o discípulo João, o gênero da pessoa facilmente pode ser questionado devido ao comprimento dos cabelos do personagem e suas características afeminadas.

O resultado é que alguns dizem que essa figura, na verdade, é uma mulher. E se isso for verdade, então a identidade se torna uma fonte até mais controversa. Uma das teorias mais populares nessa corrente foi usada como parte do tema central do romance imensamente popular de Dan Brown, O Código Da Vinci, de 2003.

Como sugere o título do romance, sua premissa é que o grande polímata e artista planejou mensagens ocultas em sua obra de arte. E o livro de Brown afirma que esses símbolos aludem, aparentemente, ao fato de Jesus ter realmente se casado com Maria Madalena. Fala-se por exemplo que há uma letra “M” desenhada no centro da pintura, que aparentemente representaria tanto Madalena quanto a ideia de casamento (que em inglês se diz “marriage”)

E Maria Madalena foi inegavelmente uma figura-chave dentro das escrituras cristãs. A seguidora mais fiel de Jesus esteve supostamente presente a sua crucificação, por um lado, enquanto é dito que ela também estava entre os primeiros a saber de sua ressurreição. Sendo assim, ela passou a ser mencionada como “ó apóstolo dos apóstolos”, dentre várias denominações.

Assim, poderia Maria Madalena ter sido esposa de Jesus? Bem, a maior parte dos estudiosos de história e religião rejeitam totalmente essa ideia, já que não há evidência forte que sugira ser o caso. De fato, os conceitos levantados pelo romance de Dan Brown eram apenas ideias antigas retrabalhadas que foram baseadas na mesma premissa.

Não há muita dúvida de que Leonardo era um mestre da ambiguidade, no entanto, e sua pintura mais famosa leva a ampla interpretação aos níveis mais altos. La Gioconda, conhecida como Mona Lisa, mostra uma mulher com um leve sorriso enigmático no rosto, que tem intrigado os observadores por séculos. O trabalho é um especialmente bom exemplo do famoso uso de Leonardo da técnica do sfumato, que pode ser traduzido como borrado, suave ou vago. É um efeito sombreado que talvez pudesse ser aplicado ao significado do trabalho de Leonardo tanto quanto a seu próprio estilo artístico.

Apesar de tudo, o expert em Leonardo, Mario Taddei, também rejeita a teoria estabelecida no romance de Dan Brown. E no centro da posição de Taddei está o fato de que a pintura de Leonardo não se sustenta por si quanto ao que retrata, já que ele estava longe de ser o primeiro artista a interpretar a cena do Evangelho.

“Antes de Leonardo da Vinci, houve centenas de ‘Últimas Ceias’, e quando ele pintou A Última Ceia, teve de seguir algumas regras,” disse Taddei ao Smithsonian em julho de 2016. “Essas regras exigiam as pessoas naquelas posições e com aquele sorriso de maneira que os apóstolos fossem reconhecidos um por um”.

Então, quando voltamos à teoria estabelecida em O Código Da Vinci, Taddei desdenha. “Esse seria João ou Maria Madalena?” ele perguntou. “É uma pergunta muito fácil, mas estúpida, porque deve ser João, já que Leonardo teve de copiar as últimas ceias antes dele, e João parece uma mulher.”

Mas isso não significa que Taddei desdenhe da ideia de uma mensagem oculta na obra de arte – longe disso, na realidade. Ao invés disso, entretanto, Taddei acredita que Leonardo estava tentando tornar a afirmação menos óbvia em sua pintura – uma pintura que está centrada no conceito do uso de halos.

No período no qual A Última Ceia foi criada, como se sabe, era comum que se incluíssem halos ao redor de qualquer representação de Jesus e seus apóstolos – além de Judas. Essas características naturalmente pretendiam implicar que essas pessoas eram divinas, ou pelo menos sagradas. E como A Última Ceia foi produzida numa era devota, é um pouco surpreendente ver Leonardo quebrar a tradição contemporânea de incluir qualquer halo.

Sendo assim, Taddei crê que a omissão de halos foi em si de verdade uma mensagem de Leonardo – e a decisão em si foi potencialmente controversa. “Creio que Leonardo nunca colocou os halos porque acha que aquelas pessoas sejam pessoas comuns. E esse é o real segredo de Leonardo,” explicou Taddei. “Não há extraterrestes ou objetos sobrenaturais n´A Última Ceia. Leonardo quer nos dizer que os 13 homens são homens simples, e isso é algo bem mais poderoso.”

Mesmo descontando a sugestão sobre Maria Madalena, entretanto, parece que poderia haver ainda mais mensagens escondidas n´A Última Ceia. Há uma teoria, por exemplo, que está relacionada ao sistema numérico usado no agrupamento que Leonardo fez das pessoas que jantam na pintura. E há dois grupos de três apóstolos em cada lado de Jesus, significando que o posicionamento pode ser interpretado como 3,3,1,3,3.

E mais que isso, se a interpretação de Tadei sobre a pintura for precisa, então Leonardo, ao que parece, estava se apresentando como um cético religioso – o que teria sido altamente controverso para a época. Sem dúvida, o artista foi um homem da ciência, e isso não conta na teoria religiosa. E mais: se, como especulado, Leonardo era gay, isso também o teria colocado do lado de fora do paraíso, de acordo com as crenças da época. Mas qual a relação entre esses fatos e a aparente proporção 3,3,1,3,3?

Bem, de acordo com uma teoria, a resposta está no Livro das Lamentações 3:31-3 – com os números do capítulo e do verso todos nitidamente indicando a razão numérica das pessoas retratadas na pintura. E essa específica passagem do Velho Testamento começa assim, “Porque ninguém é rejeitado pelo Senhor para sempre.” Poderia ter sido essa a profecia de Leonardo sobre sua própria salvação?”

Seja qual for a sua opinião sobre essa teoria em particular, no entanto, não é, sem sombra de dúvida, o segredo mais obscuro supostamente mantido dentro das pinceladas de A Última Ceia. Nem é o mito que os modelos humanos usaram para Jesus e Judas terem sido uma e mesma pessoa – embora essa hipótese em particular seja uma alegoria fascinante sobre o pecado.

Uma versão dessa história diz que Leonardo identificou um jovem que possuía todas as características que o pintor buscava para retratar Jesus. Então, anos depois, com o serviço sendo feito, A Última Ceia estava quase pronta, exceto pelo rosto de Judas. Buscando um sujeito sinistro adequado para usar como base em sua interpretação, Leonardo, supostamente, foi a uma prisão local e procurou por um prisioneiro. Foi só depois de ter completado a pintura, no entanto, que o artista descobriu que os modelos para Jesus e Judas eram um só e mesmo homem – ou é assim que diz a lenda, de qualquer forma.

Infelizmente, no entanto, essa história em particular é duvidosa demais para ser precisa. A suposta linha do tempo não resiste a esse questionamento, por um lado, de que a pintura, segundo dito, foi completada em um período de quatro ou cinco anos, no máximo. Mas então há uma outra teoria sobre A Última Ceia – e é uma que parece contradizer as sugestões de que Leonardo de alguma forma não era crente.

Especificamente, diz-se que o grande mestre incluiu notas musicais na pintura. E, na superfície, isso não é assim tão impossível; Leonardo também era músico e criador de instrumentos, afinal. O potencial para que houvesse ainda outro segredo instigou a curiosidade de Giovanni Maria Pala, também, e Pala consequentemente começou a analisar a possibilidade de que houvesse uma composição musical escondida na obra.

Pala até descobriu algo intrigante depois de transpor pautas musicais sobre A Última Ceia e usar símbolos religiosos específicos, tais como o pão e as mãos, para identificar notas. Mas a composição só faz realmente sentido quando o italiano percebeu que a partitura deveria ser lida no método particular de escrita de Leonardo: da direita para a esquerda.

O resultado é uma peça musical de 40 segundos, que Pala descreveu como um hino a Deus. Ele também sugere que o órgão de tubos – usado extensivamente nos dias de Leonardo para música religiosa – entregue a composição com seu melhor efeito. E Pala até gravou o tom que interpretou de A Última Ceia bem como detalhou o processo em seu livro La Musica Celata, traduzido para o inglês como The Hidden Music.

Além do mais, Pala crê que sua descoberta aponta para uma versão um tanto quanto diferente de Leonardo do que aquela associada por algumas outras teorias relacionadas a A Última Ceia. “Uma nova figura surge. [Leonardo] não era um herege como alguns creem. O que surge é um homem que crê – um homem que realmente crê em Deus,” disse Pala ao Associated Press em novembro de 2007.

Seja qual for a verdade, contudo, talvez a verdadeira genialidade de A Última Ceia repousa no fato de que ainda cativa observadores tantos séculos depois. E graças a suas belas figuras trabalhadas, ao domínio do uso da perspectiva e à inclusão sábia de simbolismo aparente, a obra de arte ainda possui a capacidade de criar debates infinitos, também.